Nota técnica aos médicos-veterinários esclarece mecanismos de infecção e a relação entre animais de estimação e a COVID-19
Para esclarecer as questões técnicas relacionadas aos animais de estimação e a Covid-19, três Médicos-Veterinários elaboraram uma nota técnica contendo informações aos profissionais.
Confira abaixo as orientações de: Alexandre Daniel, mestre em Clínica Veterinária pela FMVZ da Universidade de São Paulo (USP) e diplomado pelo American Board of Veterinary Practitioners (ABVP) como especialista em Medicina Felina; Marcelo Demarchi Goissis, doutor em Ciência Animal pela Michigan State University, com pós-doutorado no Hospital for Sick Children, Toronto (Canadá), e mestre em Reprodução Animal pela FMVZ (USP), onde ocupa, atualmente, o cargo de professor doutor no Departamento de Reprodução Animal; e Paulo Eduardo Brandao, virologista, mestre e doutor pela FMVZ (USP), universidade na qual leciona o tema “Doenças Infecciosas”.
NOTA TÉCNICA:
Dadas as recentes informações veiculadas pela mídia em que gatos, cães e até felídeos silvestres (cinco tigres e três leões até o momento) testaram positivo para o coronavírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, ou tiveram suspeita de terem tido contato com vírus, é importante discutir a possibilidade de se esses animais possam ter sido realmente infectados e, se sim, quais medidas podem ser tomadas por veterinários e tutores.
O Betacoronavirus que causa a COVID-19 (Coronavirus disease 2019), inicialmente denominado de 2019-nCoV, é chamado de SARS-CoV-2. É um coronavírus diferente dos que comumente acometem os gatos e cães, como o coronavírus entérico felino e o coronavírus canino, que são Alphacoronavirus e NÃO infectam os humanos.
O SARS-CoV-1, causador da SARS, que emergiu em 2003, usa a enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) como receptor (Li et al. 2003. doi: 10.1038/nature02145), assim como o SARS-CoV-2 (Wan et al. 2020, DOI: 10.1128/JVI.00127-20). Essa proteína é expressa em células do trato respiratório e de outros tecidos, especialmente nos pulmões (Hamming et al. 2004, DOI: 10.1002/path.1570). A identidade entre as sequências de aminoácidos da ACE2 humana (XP_011543851.1 ), de felinos (NP_001034545.1) e cães (NP_001158732.1) é de 86% e 84% respectivamente. A ligação entre o receptor celular e a proteína de acoplamento viral, chamada de proteína de espícula no caso dos coronavírus, se dá principalmente por meio de 5 aminoácidos. Desses 5 aminoácidos, 2 são diferentes nos gatos (Wan et al. 2020) e cães, quando comparados aos humanos. Entretanto, são aminoácidos com características bioquímicas similares que permitem inferir que o vírus reconheça a ACE2 desses animais (Wan et al. 2020).
Os ferrets tem os mesmo 5 aminoácidos que os gatos (Wan et al. 2020) e são passíveis de infecção por SARS-CoV-2 e de causar transmissão horizontal (Kim et al. 2020, DOI: 10.1016/j.chom.2020.03.023). Em 2003 já havia sido demonstrado que ferrets e gatos podiam ser infectados com o SARS-CoV, o coronavirus causador da SARS, e apresentavam transmissão horizontal (Martina et al. 2003, doi.org/10.1038/425915a). No entanto, não houve relatos de gatos sofrendo de maneira massiva de infecção respiratória grave, nem o relato da transmissão zoonótica da SARS.
Tendo em vista a possibilidade bioquímica para infecção pelo coronavírus causador da COVID-19 e relato esparsos de infecções e transmissão horizontal do coronavirus causador da COVID-19 (Bélgica, Hong Kong e EUA), devemos considerar com cuidado a possibilidade de que gatos possam ser infectados por SARS-CoV-2. Entretanto, estudos científicos bem delineados devem esclarecer o real papel epidemiológico dos animais domésticos na pandemia de COVID-19.
Até o momento, não existem evidências de transmissão do coronavírus SARS-CoV-2 de gatos domésticos para humanos, com somente o inverso sendo referido.
Sendo assim, não existe necessidade de medo ou pânico com relação aos gatos e cães desenvolverem ou transmitirem o coronavírus que infecta os humanos. Tampouco existe indicação da realização desse teste nos animais de companhia.
O gato pode ser um sentinela e um hospedeiro terminal, refletindo o ambiente em que vive, não sendo ainda um transmissor confirmado do vírus para humanos. Os gatos e cães podem atuar como carreadores do vírus, com seu pelame atuando como fômite, e até podem, eventualmente, adquirir o agente viral se conviverem com um (ou mais) seres humanos infectados. Ou seja, humanos com sintomatologia suspeita de COVID-19 (ou com diagnóstico confirmado) devem se isolar de outras pessoas e dos gatos e cães e outros pets, minimizando a chance de infecção das pessoas e outros animais que estão ao redor. As demais medidas de contingenciamento passadas pelo ministério da saúde devem se manter ativas.
As recomendações da World Small Animal Veterinary Association (www.wsava.org) e da American Veterinary Medical Association (www.avma.org) devem ser consultadas e seguidas, com medidas plenamente aplicáveis às nossas clínicas e hospitais. Os hábitos de higiene, etiqueta respiratória e distanciamento social devem ser mantidos, com as devidas precauções e orientações de que tutores suspeitos ou positivos para COVID-19 evitem contato direto com seus pets. Aos médicos veterinários recomendam-se o uso de máscaras, jalecos de manga comprida, óculos e para os que tem cabelos compridos, deixem os mesmos presos. Lavagem sistemática das mãos e higienize a mesa com álcool 70% após cada animal atendido, bem como maçanetas e puxadores de porta a cada cliente atendido, também é recomendada. O atendimento e manejo dos pacientes deve ser feito de acordo com as recomendações da Academia Brasileira de Medicina Veterinária Intensiva (BVECCS) e AMIB (www.amib.org.br/pagina-inicial/coronavirus), reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária.
E o ponto fundamental é a correta orientação dos proprietários e público geral, de que os gatos e cães são contactantes, assim como outros humanos nas unidades familiares, devendo também serem protegidos em caso de suspeita ou confirmação de COVID-19 humana dentro (e fora) de casa. E dependemos disso para minimizar o risco de abandono e comportamentos indevidos com nossos animais de estimação.
Alexandre G. T. Daniel MV, MsC., DipABVP (Feline)
Gattos Medicina Felina
CRMV-SP 20.179
Prof. Marcelo D. Goissis, MV, MsC, PhD
FMVZ/USP
CRMV-SP 20.941
Prof. Paulo E. Brandão, MV, MsC, PhD
FMVZ/USP
CRMV-SP 10926
Assessoria de Comunicação do CFMV